quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Casa da minha infância

Frequentemente, oiço pessoas a falar carinhosamente das memórias que têm dos avós ao longo da sua infância, das coisas boas que lhes proporcionaram durante o seu crescimento, pormenores que lhes recordam a proximidade e cumplicidade com a família nesses tempos, os cheiros da infância que os remetem muitas vezes para a casa da avó e os dias lá passados. E eu nunca me identifiquei com isto, porque nunca o senti. Nunca passei dias em casa dos meus avós, nem maternos, nem paternos. Nunca gostei da comida da minha avó, nem nunca fui mimada por eles com beijinhos, docinhos, coisinhas boas ou as vontadinhas todas feitas. Não me lembro do cheiro, nem do toque dos meus avós na minha infância, nem sequer de passar muito tempo com eles. Nem tampouco mostram o amor pelos netos com lamechices, como a maior parte.

Contudo, ao ir a Coimbra neste fim de semana, fui visitar uns tios-avós que lá vivem e apercebi-me que essas memórias lhes pertencem a eles. Não vivemos perto e não passei a minha infância enfiada lá em casa, mas costumávamos ir lá nas férias. Gostava de passar tempo com a minha prima, uns anos mais velha que eu e a única filha dos três que ainda vivia em casa dos pais na altura. A casa tem r/c (cujos quartos estão alugados a estudantes), primeiro andar (onde os meus tios vivem) e sótão, que, actualmente, já foi renovado e transformado em dois quartos, uma sala e uma casa de banho, mas na época, era apenas um sótão, cheio de tralha. E aquela casa, para mim, era um mundo. 

No primeiro andar, existe uma porta que dá acesso aos outros dois pisos, com umas escadinhas de cimento estreitas e sem corrimão, que me parecia sempre uma espécie de caminho secreto. Adorava descer lá abaixo, ver as portas dos quartos alugados fechadas e imaginar o que lá estava por trás; tudo silencioso e eu a percorrer o corredor em bicos de pés para não perturbar o silêncio, para não denunciar a minha presença. Saía pela porta que dava acesso à rua, dava a volta ao quintal, onde me lembro bem de haver galinhas e animais sempre presentes, subia as escadas e corria para o terraço. Entrava pela porta da cozinha dos meus tios e voltava a correr para a porta por onde tinha entrado inicialmente.

Subia muitas vezes ao sótão, adorava explorar tudo o que havia por lá. Não eram mais do que recordações e tralha da família, mas eram pequenos tesouros para mim. Tinha imensas coisas da escola da minha prima, às quais eu adorava passar revista, bonecos e brinquedos que ela já não usava, pois estava demasiado crescida para isso, trapos e toda a espécie de coisas que me fascinavam (sim, eu deslumbrava-me com pouco). Nunca esqueci o cheirinho e do sabor do pão (que não encontrei igual em mais lado nenhum) que eles tinham sempre em casa, comprado no café do outro lado da estrada, que era tão molinho como estaladiço e tão apetitoso que ainda me cresce água na boca só de pensar.

Na rua deles, fiz uma amiga, uma menina cujo nome não me recordo, mas do que me lembro é de ir brincar para casa dela, que ficava no último andar; tinha uma clarabóia no sótão onde nós brincávamos; e a mãe dela dava-nos nestum de uma forma que me marcou e que é assim que ainda hoje faço, quando como: misturado no leite, como é suposto, mas polvilhado com alguns flocos secos por cima. Achava aquilo fantástico, porque não era assim que comia em casa e adorava. 

Quanto aos meus tios, eram (e continuam a ser) pessoas mais empáticas, mais carinhosas, mais dadas aos miúdos. E a comida da minha tia era (e é!) sempre boa. E lembro-me de tudo isso. Claramente. Gosto sempre de voltar àquela casa, porque me sinto transportada. E sempre bem recebida. E sinto ali uma ligação que nunca senti e continuo a não sentir com os meus avós, apesar de viverem há muito tempo na mesma cidade que eu e desde sempre mais perto que os meus tios. Como é com vocês? Têm memórias nostálgicas dos avós? Ou, como eu, transferiram-nas para outros familiares? Ou nem sequer existe tal coisa na vossa vida?

5 comentários:

  1. Devo confessar que também não me identifico com essas coisas das memórias dos avós...

    Bjxxx
    Ontem é só Memória | Facebook | Instagram

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  2. Não interessa de quem temos memórias, o que interessa é ter vivo boas experiências para chegar ao dia de hoje e podermos ser quem somos!!!

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  3. Tenho muitas boas memórias do meu avô, principalmente de o ver a trabalhar na oficina lá de casa ou de contar as histórias de infância dele. Quando era pequenina detestava, mas agora tenho saudades de o ouvir a cantar fado... :(

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  4. adorei ler este teu testemunho, eu sou uma pessoa muito nostálgica.
    desde pequena os meus avós maternos moram mesmo atrás de mim por isso sempre me dei muito bem com eles e era mesmo o tipo de neta a quem a avó faz tudo e mais alguma coisa, até porque era a única neta até aos 6 anos, a minha avó preocupava-se tanto comigo.
    os avós paternos vivem um pouco mais longe mas também lá passei dias excelentes, era uma casa no meio do campo, brincava com os meus primos às escondidas entre outras coisas no meio dos matos, era uma bela vida :P
    acho ótimo esta capacidade que certos lugares, cheiros e sabores tem de nos fazer regressar à nossa infância...
    beijinhos :) https://ratsonthemoon.blogspot.com/

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  5. Eu também não tenho essas memórias dos meus avós, identifico-me no que estás a dizer, já os apanhei numa fase em que tinham uma idade avançada e nunca tive muito contacto, senão visitas fugazes.

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Sempre fui uma pessoa saudosista. Sempre fui muito de fotografar tudo para ter memórias físicas de todos os momentos. Mas desde que acontece...